Como é que eu me tornei livreira? Ora bem, eu sou livreira há vinte e dois anos e tornei-me livreira por causa de uma estupidez minha, que é mesmo uma estupidez… e porque gostava de livros. Juntei as duas, foi uma junção do útil e do agradável…. Cometi um erro, estava sem emprego e no espaço de dois meses, qualquer coisa do género, vi uma vaga para livreiros, concorri e fiquei.
A estupidez foi num concurso para professores em que me enganei numa das coisinhas que tinha de colocar e subi na escala indevidamente e, assim sendo, desisti esse ano de me candidatar ao ensino, pois não achava correto candidatar-me com dados errados e procurei alguma coisa para fazer esse ano para não ficar desocupada e foi quando vi um anúncio a procurar livreiros e concorri, gostei e fiquei. Não estava a pensar ser livreira, foi um acaso, mas também acho que não era o ensino que eu queria…
O que é que me faz feliz no trabalho? Ora bem, primeiro tem a ver com o facto de eu gostar de livros. Já gostava, já antes de trabalhar com livros, já era uma leitora - vamos chamar compulsiva- que já era, e na altura não havia a oferta que há… O que me faz feliz é trabalhar com livros, trabalhar com pessoas, mas acima de tudo tem mesmo a ver com os livros. O facto de gostar tanto de ler, do livro enquanto objeto, de poder partilhar aquilo que eu leio, aquilo que eu faço. Para mim existem três verbos para quem gosta de livros: partilhar, ouvir e gostar. Porque eu para fazer aquilo que faço tenho mesmo de gostar do que faço, tenho de saber partilhar e tenho de saber ouvir, mas acima de tudo partilhar, acho eu!
O que gosto menos neste trabalho é a burocracia… Essa é a parte complicada, a parte operacional da coisa, chamemos-lhe assim, a parte da gestão, porque eu não me limito a vender livros, não é? A maior parte das pessoas acha que ser livreiro é simplesmente vender livros, mas há todo um trabalho que tem de ser feito antes e depois. O livro chegar a uma livraria e sair de uma livraria implica as partes mais burocráticas, mais técnicas, mais operacionais, são as que eu menos gosto… mas isso tem a ver com o facto de eu ser de letras.
Se não fosse livreira, o que é que seria? É engraçado que eu não me lembro de fazer essa pergunta a mim própria há anos…, mas é mesmo… não sei… não vos acontece isso? Eu não me faço essa pergunta, porque não me vejo a fazer outra coisa, eu sou o reflexo daquilo que faço, eu sou aquilo que faço, aquilo que faço sou eu.
Este trabalho contribuiu muito para a pessoa que sou hoje: cresci acima de tudo, tive de aprender a lidar com pessoas, tive de aprender a saber ouvir, ou melhor escutar, mas mais do que isso, foi o aprender a lidar com pessoas, a partilhar também, não é que fosse um ser egoísta, mas por norma não tinha com quem falar, não falava muito de livros com as pessoas.
Este trabalho definiu-me. O trabalhar com livros… olha, sou eu, um livro sou eu, eu sou um livro…não sei o que que é que te hei de dizer, ó Vítor não faças perguntas difíceis…
Para mim a melhor história, e inesquecível até aos dias de hoje, porque na altura eu trabalhava com livros há dois ou três anos e não conhecia uma expressão que pelos vistos é usada aqui no Porto. Foi quando um senhor me pediu livros “do homem e mulher em função”! Eu estava na livraria há dois ou três anos e vem o senhor ter comigo e diz “Ó menina, tem livros do homem e mulher em função?” E eu estúpida a olhar para ele “Homem e mulher em função? Mas eu não sei o que é isso…” e ele “Ó menina! Homem e mulher em função!” e eu “Pois, mas… eu não estou a perceber…” e ele “Ó menina, aqueles livros, em que normalmente o autor é anónimo” e saiu-me assim muito alto “Ah! Está a falar de livros eróticos?” e ele “Sim, é isso!” Porquê? Porque havia na altura uma coleção, acho que era da Europa-América, dos clássicos eróticos que são quase todos anónimos, que são as “onze mil vergas” e não sei o quê… já nem me lembro. E eu não conhecia a expressão “homem e mulher em função” e depois alguém me disse “Então essa é uma expressão muito conhecida, é sexo!” e eu não conhecia! Essa marcou-me pela inexperiência e por ser uma situação caricata.
Depois há aqueles momentos marcantes que é quando alguém nos agradece o nosso trabalho ou nos elogia. Lembro-me de várias pessoas em particular. Um foi com o “Stoner” do John Williams. Um senhor foi à livraria de propósito agradecer-me por lhe ter recomendado o livro e que já tinha comprado para aí cinco ou seis para oferecer. O outro foi um livro que eu gostei muito que é o “Pátria” do Fernando Aramburu e eu estava a falar do livro normalmente a um senhor e ele simplesmente me diz assim “Não me diga mais nada, o brilho nos seus olhos já me disse tudo. Não precisa de me dizer mais porque já me conquistou!” E, como esses, há outros porque quando falamos de um livro de que gostamos, a pessoa que está à nossa frente percebe. Percebe que não é forçado, que é sentido, que vem mesmo cá de dentro.
Quando faço isto não estou só a vender, estou a partilhar. Como é óbvio, o meu objetivo é vender, mas aqui falo de partilhar, dar a conhecer… Eu gosto muito de descobrir, gosto de descobrir autores novos, autores diferentes, fujo mesmo dos autores, vou chamar de tops ou de massas, os mais conhecidos que andam aí nas redes sociais ou afins, não é que não os leia (que também leio), mas ao longo destes anos todos enquanto leitora, é raro agora dizer que não gosto de um livro, é raro! Porquê? Porque tudo o que eu leio já é escolhido de outra forma, não é aleatório, não é porque me vem parar simplesmente às mãos, eu estou a ler aquele livro por algum motivo, ou porque comprei há dez ou quinze anos e sabia que o iria ler um dia, ou porque é um autor de que eu gosto mesmo muito ou porque o tema me desperta…é raro nos últimos anos dizer “Eu não gostei deste livro.” É sempre interessante, eu também tenho uma particularidade, eu nos livros tento sempre encontrar algo de positivo. Por muito que o livro me tenha custado a ler ou que não tenha gostado tanto, eu encontro sempre algo de positivo nos livros, sempre!
Para ser um excelente livreiro é preciso saber ouvir, saber partilhar, nunca inventar, nunca mentir, se não se conhece o livro, não vale a pena inventar e usar aquelas expressões… detesto adjetivos para descrever livros, quer dizer deixa-me retificar, não é que eu não goste de adjetivos, não gosto de determinados adjetivos “Ai este livro é maravilhoso!” “Ai, é soberbo!” “É delicioso” “É lindo” “É fofo”, o que é um livro fofo? Mete-me um bocado de confusão…
O conselho principal que eu dou a quem quer fazer isto é que seja verdadeiro. Ser verdadeiro porque como se costuma dizer “a mentira tem a perna curta”. Eu não consigo, se me perguntam por um livro que eu não li, ou que não conheço, eu digo! Eu digo “Olhe, não sei, não li!”, ou então, se li alguma coisa, complemento, digo que vi um artigo ou que alguém já leu que eu conheço, mas não invento naquilo que não conheço.
O que acrescento à vida dos outros? É assim, o livro pode ser um escape… não estou a ver como é que posso ajudar as pessoas… Como é que a vida das pessoas pode ficar melhor por eu existir? Olha, porque eu recomendo bons livros!
Lembrei-me agora de uma história que aconteceu há dias, por falar nisso, aconteceu na semana passada. É uma daquelas pessoas que costumam ir à livraria bastantes vezes, há pessoas que nós só cumprimentamos, outras com quem falamos. Foi casual, a senhora disse-me que queria sair da zona de conforto dela e então se eu lhe recomendava alguma coisa, eu já lhe tinha recomendado vários e ela agora vai lá constantemente perguntar-me por livros. Ela disse-me você falou-me de um chinês há uns dias atrás e eu lá lhe mostrei o chinês e diz ela “Olha, você está a ficar famosa!” E eu “Famosa, porquê?” e ela “Fui há uns dias a outra livraria e estava a dizer-lhes que tinha vindo aqui e que me tinham recomendado xis xis xis… e eles disseram logo que só podia ser a Florinda, claro! Livros fora da caixa, só pode ser ela” Isso é gratificante! E o que é que eu trouxe à vida dela? Trouxe novidade! Ela saiu da zona de conforto dela, ela agora lê coisas completamente diferentes, desta vez levou os três livros que lhe recomendei.
Porque eu também gosto de autores que não são tão conhecidos…olha, o último que li, a “Pele” do Malaparte, quem é que ouviu falar na “Pele”? Um livro tão duro… tão violento… nunca chorei a ler até ler este livro.
| Florinda |
Sobre o Projeto:
Qual é a história da pessoa que conhecemos a fazer o seu trabalho? O que é que a faz feliz na sua função? E infeliz? De que forma aquilo que faz influencia a pessoa que é? Como é que ela pensa que o seu trabalho ajuda os outros a ter uma vida melhor? O que é que a motiva a continuar todos os dias? Num mundo em que cada vez mais se exigem resultados, e a energia escasseia para ver verdadeiramente o outro, este é um projeto fotográfico e de storytelling sobre a face humana do trabalho.
Com a fotografia tento captar a 'essência' da pessoa, a sua individualidade, a sua verdade, e por isso evito que se esconda atrás do seu sorriso, se este não for natural. Gosto de a fotografar no seu contexto profissional para que possamos ver o "humano no trabalho", utilizo apenas a luz que existe nesse local e, por último, optei pelo preto e branco para que a cor não seja uma distração ao essencial: para que as marcas da vida, as rugas, a emoção no olhar e as formas do rosto e do contexto fiquem mais evidentes e intensas.
Aqui interessa-me a recolha da história simples e sintética da pessoa na sua relação com o trabalho, como este o transforma enquanto ser humano, e de que forma ajuda os outros. Escrevo as palavras tal e qual como me são ditas para não contaminar a verdade do entrevistado com correções e com as minhas interpretações.
| Vítor Briga |